24 março 2010
O Pai, os Filhos e a Rússia
Esta crítica foi escrita para ser distribuída na sessão de ontem em que exibimos O Regresso. É longa demais para ler num ecrã de computador (possivelmente desinteressante demais para ler de qualquer maneira), mas como já estava pronta não me apeteceu editá-la numa mais contida versão online.
O início
Dois jovens irmãos russos vivem com a mãe e a avó e já não recordam o seu pai, que viram pela última vez quando ainda eram crianças muito pequenas: dele só conhecem a fotografia que guardam numa arca no sotão.
É para esta memória de papel que correm a confirmar a identidade do homem que está deitado na cama da mãe deles e que ela lhes diz ser o seu pai: a dormir, com o lençol envolvendo-lhe as pernas, o pai (a fotografia confirma que é ele) aparece aos miúdos, e aos espectadores, exactamente como a qualquer visitante da Pinacoteca di Brera em Milão aparecerá o Cristo da “Lamentação sobre o Cristo Morto” de Andrea Mantegna (no topo do post). Esta perspectiva forçada sobre o corpo do pai, reutilizada na viagem de regresso no barco, e outras referências cristãs disseminadas pelo filme são suficientes para suportar uma integral interpretação cristã da história, mas o sucesso do filme e a sua apreciação não dependem desse nível de significado subjacente à narrativa.*
O meio
Antes do regresso do pai já os dois personagens principais foram definidos e caracterizados com a intensidade e a economia que serão constantes do filme. Também logo na primeira cena somos apresentados a dois influentes e cúmplices participantes do filme: a natureza russa e o brilhante trabalho de fotografia de Mikhail Krichman. Os lagos e a chuva, a floresta densa, a praia, a estrada, a ilha, são o ambiente fulgurante e de virginal mas desolada beleza em que se desenrola a viagem, primeiro num carro e depois num pequeno barco, que os os filhos fazem com o pai. O ambiente natural e a meteorologia reflectem durante todo o filme o conflito entre as personagens, e são utilizados para criar várias imagens perturbadoras e paradoxais: no meio de um lago sem fim à vista, a chuva é tanta que os irmãos e um espectral pai parecem habitar um cubo metálico. A viagem tem a consequência habitual (talvez um nada mais dilacerante) das viagens nos filmes e nos livros, na arte em geral: nada será como dantes; embora, neste caso, algo tenha voltado definitivamente a ser como sempre fora. A localização das cenas inicial e final em cenários similares, torres de madeira que sobrepujam um pontão, no início, e um terreno de uma ilha, no fim, para além do efeito de simetria, põe em evidência, sobre um mesmo fundo, as mudanças que a viagem e os acontecimentos infligiram às personagens. Até à resolução, vai engrossando a tensão da resistência do filho mais novo ao pai, entrelaçada com a solidariedade esforçada entre os irmãos que já tinham aprendido a sobreviver sem um pai e as suas severas lições de vida viril empurradas com shots de vodca. Apesar do tempo que passa com os filhos, o pai não deixa para eles de ser um homem obscuro, um enigma encerrado numa caixa afundada, ou uma fotografia encerrada num baú.
O fim
O filme termina com a apresentação de uma sucessão de fotografias a preto e branco com uma qualidade nostálgica imediata: parecem ter sido tiradas há muitos anos e toda a gente parece tão feliz. Compreendemos logo que são as fotos que Andrey e Ivan tiraram durante a a viagem com o pai e em nenhuma delas, exceptuando uma de um tempo mais antigo, o pai aparece. É como se o pai, essa personagem opaca durante todo o filme (não sabemos, nem sabem os seus filhos, porque voltou, onde esteve, quem ele é), tivesse regressado para ser um mero instrumento no crescimento dos miúdos. Ivan ultrapassa a infância ao escalar a torre tão alto quanto é possível e Andrey imediatamente depois da morte do pai assume uma posição paternal em relação ao irmão, mais novo: com o relógio do pai no pulso, dá-lhe ordens, e enquanto o irmão sofre visivelmente com a morte do pai, ele parece resignado.
A ameaça, mas também uma inabilidade em se relacionar, que, por palavras e silêncios, actos e omissões, o pai demonstra são representadas com perfeita contenção por Konstantin Lavronenko. Vladimir Garin e Ivan Dobronravov, os actores que representam os irmãos, são excelentes no seu primeiro filme, e, no caso daquele, último: o actor que interpreta o papel de Andrei, o irmão mais velho, morreu afogado num lago não muito afastado daquele em que rodara o filme algumas semanas antes. Mas a estreia mais auspiciosa é a do realizador Andrei Zvyagintsev. A economia da narrativa, as relações muito bem calibradas entre personagens, as interpretações impecáveis, e a forma como tudo é mostrado, a um ritmo lento mas contínuo, fluido, exibem uma segurança invulgar num filme inaugural. O segundo filme, Izgnanie (inédito em sala ou em DVD em Portugal, mas traduzido, e mal, a partir do inglês, como O Desterro) imita O Regresso no tema cristão, supera-o em exuberância visual, e fica aquém deste na condução da narrativa: o resultado líquido é quase tão bom, e não devia ser preciso recorrer a meios ilegais nem ao comércio internacional para lhe ter acesso.
*Para além da primeira imagem crística, quando os filhos vêem o pai deitado na cama, há um plano muito similar quando o pai está deitado no barco a remos, e ainda o do pai caído na terra sob a torre; e na primeira refeição o pai ordena que aos filhos seja servido o vinho, e divide à mão o alimento entre eles; contribui também o nome do irmão mais velho: André era um pescador que seguiu Cristo como seu discípulo assim que o conheceu, e depois da morte de Cristo terá pregado a sua palavra em regiões que correspondem à actual Rússia; há ainda as reacções polarizadas que o regresso deste pai e a aparição de cristo causaram: a resistência, a desconfiança e a ameaça de uns, e a rendição incondicional à sua figura de outros; sem esquecer o mais evidente: a morte do pai.
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